Gradativamente, o preço desse processo tem sido o distanciamento das melhores ações que permitam a compreensão da realidade
Regina Brandão, Antonio Afif, Marisa Agresta
Ao treinar um atleta nos aspectos técnicos, táticos e físicos, deve-se levar em conta todos os fatores que possam interferir em seu desempenho. Ou seja, é necessário entender que há pela frente complexos desafios, inerentes a um ser humano. Por isso, nosso olhar deve ser expandido para além daquelas questões comuns ao dia-a-dia de um treino. Um trecho do artigo escrito pelo professor Manuel Sérgio para a Cidade do Futebol esclarece um pouco mais o tema:
“O futebol é a modalidade desportiva que mais entusiasmo desperta no mundo todo. Mas, como motricidade humana que é, dele emerge a complexidade humana: o físico, o biológico e o antropossociológico. O futebolista que provoca admiração e espanto não tem só qualidades físico-biológicas invulgares. Com uma ou outra exceção ele é também um homem com um psiquismo forte, de autêntico vencedor”.
É inegável a grande contribuição que os preparadores físicos brasileiros deram ao futebol nas últimas décadas. Porém, o modelo de trabalho adotado pelos profissionais da área começa a dar sinais de esgotamento.
O professor João Paulo Medina, em artigo para a Cidade do Futebol, observa que os mesmos princípios utilizados outrora para a obtenção de resultados, hoje já não são tão consistentes, em virtude das mudanças paradigmáticas ocorridas na evolução do conhecimento e, por extensão, nas ciências do esporte nos últimos tempos.
O paradigma fundamentado na especialização que, de forma especial no século XX, trouxe tantos resultados práticos às diferentes áreas do conhecimento científico, hoje não consegue mais se sustentar com a mesma força. O grande desafio dos novos profissionais do século XXI será descobrir como continuar sendo competentes dentro da especificidade de sua área e, ao mesmo tempo, ter uma noção, a mais abrangente possível, de todo o contexto em que sua prática se realiza.
Portanto, já não basta saber cada vez mais sobre um campo cada vez mais restrito de atuação. Gradativamente, o preço desse processo tem sido o distanciamento das melhores ações que permitam a compreensão da realidade.
Em outras palavras, poder-se-ia dizer que o que se espera dos profissionais hoje em dia é que continuem sendo especialistas, mas ao mesmo tempo sejam também interdisciplinares, multifuncionais e tenham uma visão de conjunto. Além disso, é necessário que suportem bem as pressões e dificuldades, sejam críticos e criativos, tenham grande rapidez de respostas e possuam alta capacidade de aprendizagem.
Buscar esse perfil não é coisa simples. Exige grande esforço, determinação e compromisso daqueles que querem estar à frente de seu tempo, buscando permanentemente novas soluções para os desafios profissionais e da vida.
Na tentativa de explicitar dois modelos paradigmáticos, estimulando ou provocando uma reflexão crítica sobre o tema, serão apresentadas oito teses que tentam caracterizar cada uma das tendências.
A idéia foi simular os dois modelos, contrapondo o preparador físico tradicional, com sua visão tecnicista e reducionista, e outro tipo de profissional, emergente, ao qual chamaremos de motricista desportivo, em face de sua perspectiva bem mais abrangente na qual enfoca os movimentos e as atitudes dos atletas diante da realidade social em que vivem.
Oito teses sobre os dois modelos:
Tese 1: Dimensão Biológica x Dimensão Histórico-Cultural
Preparador físico tradicional – dá ênfase às dimensões biológicas ou biopsicológicas do atleta, tendendo a uma compreensão tecnicista e reducionista do treinamento e do desempenho esportivo de uma forma geral.
Motricista desportivo – dá ênfase ao ambiente sociocultural e à história concreta de cada atleta sem, entretanto, desconsiderar as outras dimensões.
Tese 2: Movimento Mecânico x Movimento Expressivo
Preparador físico tradicional – tem preocupação centrada no “físico”, ou seja, no movimento em seus aspectos mais mecânicos, voltados ao rendimento físico-desportivo.
Motricista desportivo – tem preocupação centrada no movimento como expressão de cultura, também em busca da melhor performance dos atletas, mas em sintonia com o significado da valorização humana, por meio da prática esportiva.
Tese 3: Individualismo x Individualidade
Preparador físico tradicional – reforça, consciente ou inconscientemente, o individualismo, ao descontextualizar a prática desportiva das contradições sociais em que os atletas vivem concretamente.
Motricista desportivo – entendendo o atleta (ser humano) como sujeito e produto da história, procura combater o individualismo (visão dominante em nossa sociedade), respeitando a individualidade em busca da cidadania dos atletas.
Tese 4: Aspectos Anatomofisiológicos x Sentido da Existência
Preparador físico tradicional – preocupa-se quase que exclusivamente com os aspectos anatomofisiológicos dos atletas, em que muitas vezes até os aspectos psicológicos têm uma importância apenas periférica ou complementar.
Motricista desportivo – preocupa-se permanentemente com o sentido da existência em todos os seus aspectos (físico-fisiológicos, psicológicos, emocionais, espirituais e sociais), buscando conscientizar seus atletas a partir da própria especificidade da prática esportiva.
Tese 5: Visão Dualista x Visão Global de Corpo
Preparador físico tradicional – entende o corpo de forma dualista ou pluralista (corpo-mente, corpo-alma, corpo-mente-espírito), fragmentando, segmentando ou “departamentalizando” o processo em busca da performance. Nesta visão, o corpo não é muito mais do que um conjunto biológico formado por ossos, músculos, nervos, pele, secreções e excreções. Às vezes (para os mais radicais), o corpo é confundido com uma máquina em busca de rendimento, de resultados.
Motricista desportivo – busca entender o corpo de forma global, ou seja, como um sistema bioenergético que estabelece relações consigo mesmo, com os outros e com o mundo ou a natureza, em que a performance esportiva pode servir de caminho para o desenvolvimento humano mais amplo. Nesta perspectiva, o corpo, a natureza e a sociedade devem ser compreendidos dentro de um conjunto integrado.
Tese 6: Autoritarismo x Autoridade
Preparador físico tradicional – em razão de o universo de seu saber ser essencialmente técnico (tecnicista), tende a estabelecer uma relação autoritária com seus atletas, pois nesta visão o “professor” é o único detentor de conhecimento no processo de aprendizagem em busca do desempenho. Nesta perspectiva, o preparador sabe tudo (sobre as técnicas de treinamento) e o atleta nada sabe. Portanto, quem sabe (o professor) ensina, quem não sabe (o atleta), aprende.
Motricista desportivo – com uma sólidade visão de homem e de mundo, conquista a autoridade e o respeito entre seus atletas. Sua autoridade, portanto, não se esgota apenas em sua competência técnica, mas avança para perceber, de forma mais ampliada, o significado de suas expressões e manifestações de vida, em que a cultura corporal e esportiva se inserem. Nesta perspectiva, há uma permanente interação entre o professor e o atleta. Embora ele (professor) saiba algo que seus atletas ainda não sabem, está sempre aberto e aprendendo com eles.
Tese 7: Expontaneísmo x Intencionalidade
Preparador físico tradicional – tem, muitas vezes, uma visão ingênua do fenômeno esportivo, considerando-o, em geral, saudável e educativo, independentemente das intenções (boas e/ou más) que inspiram todas as ações humanas. Não se dá conta de que o esporte pode levar a uma prática doentia e não educativa, se não houver intencionalidade na direção oposta, ou seja, da prática saudável e educativa.
Motricista desportivo – para além de seus objetivos específicos de rendimento, buscando conquistas e vitórias, vê a prática esportiva como um instrumento que pode favorecer o desenvolvimento humano, perseguindo conscientemente a justiça, a fraternidade e a solidariedade entre os homens, caso haja esta intencionalidade por trás das práticas esportivas.
Tese 8: Objeto de Produção x Busca da Transcendência
Preparador físico tradicional – o atleta é visto quase como uma máquina e o corpo com um objeto de produção, reprodução e consumo. Não é sem razão que, nesta perspectiva, os jogadores de futebol são tratados como “peças de reposição”.
Motricista desportivo – vê o atleta como um ser verdadeiramente humano, ou seja, um ser carente em busca de sua transcendência (auto-superação permanente) e de sua realização como profissional competente, mas também como ser social que contribui para o desenvolvimento da sociedade em que vive.
(*) O presente texto é parte do capítulo escrito pelos autores para o livro Futebol, Psicologia e a Produção do Conhecimento, da Coleção Psicologia do Esporte e do Exercício – Vol. 3, Editora Atheneu, 2008, p. 149-173, organizado por Maria Regina Ferreira Brandão, Afonso Antonio Machado, João Paulo Medina e Alcides Scaglia.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário